sexta-feira, 1 de junho de 2012

Lucílio Manjate - De imaginar tão somente (conto)


DE IMAGINAR TÃO SOMENTE
Lucílio Manjate

Sentou-se no banco do jardim. Na mão pequena a sanduíche grande. Com a direita, acomoda-se melhor no banco de madeira de um verde-escuro descorado pela chuva. Mastiga, absorta, uma dentada, como só as crianças fazem, entre uma ária sussurada, indistinta, e aquela mastigação que às mães coloca na irresolução entre um tabefe e mais uma reprimenda: já te disse para não comeres de boca aberta. E o leitor sabe que em seguida é sempre aquele olhar irónico, desafiador até, reclamando essa pueril e invulgar manifestação de liberdade.

Descera a correr ao jardim, felicíssima, após muito implorar à mãe, garantindo-lhe que não se faria à estrada, ante a advertência da senhora para que não brincasse com os miúdos que faziam gincanas absurdas com bicicletas. A menina assentia, mas com pesar da mãe que nunca percebera que não era aquele absurdo que a fascinava desde que completara seis anos e pela mão dos pais passava pelo jardim. Pelo contrário, ela procurava, obstinadamente, uma memória onírica que mais intensamente, mais densamente em si florescia em cheiros, sons e sabores. Nessa altura, entretanto, ao contrário do que agora sucedia, os pais arrastavam-na para a rua, obrigando-a a contemplar as mesmas gincanas que, sem o saberem, não a admiravam...

Um dia tiveram que vendar insensibilidade da menina, e para ela acorreram. E tudo porque o Jojó, filho de um eminente vizinho que por alturas andava em campanha para as municipais, menino traquina e mesquinho, como o presidenciável, ironicamente tratado pelo quarteirão, malhara e rachara a cabeça ao abalroar na ladeira do passeio depois de falhar o pedal da bicicleta. Os aplausos cessaram dando lugar ao silêncio daquela morte instantâne, que, montante abaixo, cruzando as artérias do calcetamento, vazava nos frangipanis a desabrochar nas órbitas ingénuas da menina sentada, quieta, no banco do seu jardim.

De facto, correria inútil, pois não era para o vazio que aquela morte abria que a pequena olhava, mas sim para o do jardim, enfim, para essa imagem que somente os sentidos consentiam,

a brisa nas faces ingénuas,

o perfume dos frangipanis

a lira dos pássaros

a experiência

de uma pétala

de uma folha

no leito da língua;



enfim, contemplava o seu jardim... Foi nessa imaginação que os pais a encontraram, longe do alvoroço daquela morte traquina e mesquinha. E, sem perceberem bem porquê, deixaram-na estar naquela quietude.

A menina não ouvia, pois, a balbúrdia que tantas vezes vaticinara, tantas quantas os aplausos a fizeram encrespar o cenho ante a eminência da morte que somente ela conseguiu ver, talvez como recompensa...

pensou e começou a chorar.

Uma vez tentou pintar, fracassada a gesticulação, mas os pais não entenderam a profecia, pois tão pouco se pasmaram com as persistentes cores vermelhas, as crianças estateladas no asfalto e paradoxo nos sorrisos e salvas de palmas da audiência, para não falar das bicicletas e skates destroçados no asfalto. Desde então passou a substituir as opressivas imagens pela liberdade que as cores sonhadas, os cheiros e sabores infundiam, e para o jardim passou a ir e deixar-se estar sentada, sussurrando qualquer encanto nesse jeito peculiar a que já me referi, entre uma ária sussurrada e distinta e uma repreensão mastigada. E Deus a livre e guarde de a mãe ouvir nessa dolência, pois, em ouvi-la, a paisagem perderia as cores da liberdade que, felizmente, a menina sempre imaginou...

MANJATE, Lucílio. O contador de palavras. Maputo: Alcance Editores, 2011.p. 30-33

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