sexta-feira, 1 de junho de 2012

Aurélio Furdela - Mafa-Vuka (conto)

MAFA-VUKA
Aurélio Furdela

Mafa-Vuka, era de facto, um homem de grandes intimidades com a morte. Gabava-se de, na sua múltipla existência, ter feito três viagens de ida e volta para o além. “A morte é uma viagem digna de ser empreendida”, dizia ele, tentando convencer os circustantes da necessidade de se explorar o turismo celestial. “Desde que se conheça o caminho de volta, é claro!”

Em toda a extensão da aldeia nunca ninguém lhe soube proveniências ou descendências: apareceu assim, sem rastos nem regras. Pelo menos, por respeitar... Construiu a sua palhota, lá para os lados do velho cemitério onde, ignorando os protestos que choveram de todas as bocas, abriu a sua machamba e se fez senhor de toda a atenção antes mesmo de misturar as suas vidas com as vivências da aldeia.

Diante de Mafa-Vuka tinha-se sempre a uma nítida sensação de se estar perante um ser imaterial, quase fantasmagórico. Falava calma e pausadamente, com gestos demorados, vagarosos como passos de uma noite de Inverno: não dispensava pressa a nada. Parecia ter o tempo deste e de outro mundo controlado no olhar, vago e distante, feito luz de um candeeiro que começa a ficar sem petróleo, carregado de um quê de mistério, de quando em vez, a gelar a espinha dos velhos.

– Esse homem tem parte com o diabo. – disse o velho Matanto quando lhe foi transmitida a notícia do quarto regresso celestial de Mafa-Vuka. – Onde já se ouviu tanta morte numa única vida?!...

– Só aqui em Missassa, onde os deuses andam mancomunados com os demónios.

– Não blasfemes, Titosse.

– Cansei-me desse homem: sempre que ressuscita, tem que morrer outro alguém.

– Ressuscitar... Olha, ressuscitar, ressuscitou o Nosso Senhor Jesus Cristo: esse outro, apenas volta!

– O remédio é a gente apressar-lhe o enterro da próxima morte.

Mas, no perecimento seguinte, o padre Muvanguele, chamado com mil súplicas para vir encomendar a alma do indesejável, fez-se longo, demorado nas orações que deram tempo a Mafa-Vuka de dobrar a esquina do inferno e volta ao trato dos vivos, erro que o velho pároco pagou caro.

Segundos antes de Mafa-Vuka arrancar, mandando para os ares o tampo do caixão que ia baixando ao chão mais fundo da tumba, o santo homem de Deus foi atingido por um raio que todo o mundo, presente e ausente no malogrado enterro, jura ter nascido nos interiores da sepultura, projectando padre e bíblia para o outro lado da vida.

– Eu disse para não haver demoras nas rezas – lamentou Titosse – Da próxima não há padre!

Assim se disse, assim se fez na sexta morte de Mafa-Vuka. Para Titosse, bastaram os primeiros sinais de ausência do dito intruso para começar a mobilizar homens e desmobilizar cerimónias. Saiu com uns tantos em busca de lenha que foi amontoada sobre o recém-viajado. As cinzas, recolhidas e tratadas por anciãos de recomendável confiança, foram lançadas ao rio.

Mas, no dia seguinte, triste notícia atravessou os ouvidos da aldeia que se quedou no silêncio, no medo de ser a próxima vítima. O caso não era para menos: um crocodilo, caso inédito na história e estórias da aldeia, veio, todo atrevido, descontar Titosse do mundo dos vivos, atacando-o devoradamente dentro da sua própria palhota, enquanto dormia o sono de quem se livrou de Mafa-Vuka.

FURDELA, Aurélio. IN: De medo morreu o susto. Maputo: Imprensa Universitária, 2003. 2ª ed. p. 13-16

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