sexta-feira, 1 de junho de 2012

Sangare Okapi - Caligrama (poema)

Caligrama, poema de Sangare Okapi incluído na página 36 do seu terceiro livro de poesia, MAFONEMATOGRÁFICO TAMBÉM CÍRCULO ABSTRACTO.

Aurélio Furdela - Mafa-Vuka (conto)

MAFA-VUKA
Aurélio Furdela

Mafa-Vuka, era de facto, um homem de grandes intimidades com a morte. Gabava-se de, na sua múltipla existência, ter feito três viagens de ida e volta para o além. “A morte é uma viagem digna de ser empreendida”, dizia ele, tentando convencer os circustantes da necessidade de se explorar o turismo celestial. “Desde que se conheça o caminho de volta, é claro!”

Em toda a extensão da aldeia nunca ninguém lhe soube proveniências ou descendências: apareceu assim, sem rastos nem regras. Pelo menos, por respeitar... Construiu a sua palhota, lá para os lados do velho cemitério onde, ignorando os protestos que choveram de todas as bocas, abriu a sua machamba e se fez senhor de toda a atenção antes mesmo de misturar as suas vidas com as vivências da aldeia.

Diante de Mafa-Vuka tinha-se sempre a uma nítida sensação de se estar perante um ser imaterial, quase fantasmagórico. Falava calma e pausadamente, com gestos demorados, vagarosos como passos de uma noite de Inverno: não dispensava pressa a nada. Parecia ter o tempo deste e de outro mundo controlado no olhar, vago e distante, feito luz de um candeeiro que começa a ficar sem petróleo, carregado de um quê de mistério, de quando em vez, a gelar a espinha dos velhos.

– Esse homem tem parte com o diabo. – disse o velho Matanto quando lhe foi transmitida a notícia do quarto regresso celestial de Mafa-Vuka. – Onde já se ouviu tanta morte numa única vida?!...

– Só aqui em Missassa, onde os deuses andam mancomunados com os demónios.

– Não blasfemes, Titosse.

– Cansei-me desse homem: sempre que ressuscita, tem que morrer outro alguém.

– Ressuscitar... Olha, ressuscitar, ressuscitou o Nosso Senhor Jesus Cristo: esse outro, apenas volta!

– O remédio é a gente apressar-lhe o enterro da próxima morte.

Mas, no perecimento seguinte, o padre Muvanguele, chamado com mil súplicas para vir encomendar a alma do indesejável, fez-se longo, demorado nas orações que deram tempo a Mafa-Vuka de dobrar a esquina do inferno e volta ao trato dos vivos, erro que o velho pároco pagou caro.

Segundos antes de Mafa-Vuka arrancar, mandando para os ares o tampo do caixão que ia baixando ao chão mais fundo da tumba, o santo homem de Deus foi atingido por um raio que todo o mundo, presente e ausente no malogrado enterro, jura ter nascido nos interiores da sepultura, projectando padre e bíblia para o outro lado da vida.

– Eu disse para não haver demoras nas rezas – lamentou Titosse – Da próxima não há padre!

Assim se disse, assim se fez na sexta morte de Mafa-Vuka. Para Titosse, bastaram os primeiros sinais de ausência do dito intruso para começar a mobilizar homens e desmobilizar cerimónias. Saiu com uns tantos em busca de lenha que foi amontoada sobre o recém-viajado. As cinzas, recolhidas e tratadas por anciãos de recomendável confiança, foram lançadas ao rio.

Mas, no dia seguinte, triste notícia atravessou os ouvidos da aldeia que se quedou no silêncio, no medo de ser a próxima vítima. O caso não era para menos: um crocodilo, caso inédito na história e estórias da aldeia, veio, todo atrevido, descontar Titosse do mundo dos vivos, atacando-o devoradamente dentro da sua própria palhota, enquanto dormia o sono de quem se livrou de Mafa-Vuka.

FURDELA, Aurélio. IN: De medo morreu o susto. Maputo: Imprensa Universitária, 2003. 2ª ed. p. 13-16

Lucílio Manjate - De imaginar tão somente (conto)


DE IMAGINAR TÃO SOMENTE
Lucílio Manjate

Sentou-se no banco do jardim. Na mão pequena a sanduíche grande. Com a direita, acomoda-se melhor no banco de madeira de um verde-escuro descorado pela chuva. Mastiga, absorta, uma dentada, como só as crianças fazem, entre uma ária sussurada, indistinta, e aquela mastigação que às mães coloca na irresolução entre um tabefe e mais uma reprimenda: já te disse para não comeres de boca aberta. E o leitor sabe que em seguida é sempre aquele olhar irónico, desafiador até, reclamando essa pueril e invulgar manifestação de liberdade.

Descera a correr ao jardim, felicíssima, após muito implorar à mãe, garantindo-lhe que não se faria à estrada, ante a advertência da senhora para que não brincasse com os miúdos que faziam gincanas absurdas com bicicletas. A menina assentia, mas com pesar da mãe que nunca percebera que não era aquele absurdo que a fascinava desde que completara seis anos e pela mão dos pais passava pelo jardim. Pelo contrário, ela procurava, obstinadamente, uma memória onírica que mais intensamente, mais densamente em si florescia em cheiros, sons e sabores. Nessa altura, entretanto, ao contrário do que agora sucedia, os pais arrastavam-na para a rua, obrigando-a a contemplar as mesmas gincanas que, sem o saberem, não a admiravam...

Um dia tiveram que vendar insensibilidade da menina, e para ela acorreram. E tudo porque o Jojó, filho de um eminente vizinho que por alturas andava em campanha para as municipais, menino traquina e mesquinho, como o presidenciável, ironicamente tratado pelo quarteirão, malhara e rachara a cabeça ao abalroar na ladeira do passeio depois de falhar o pedal da bicicleta. Os aplausos cessaram dando lugar ao silêncio daquela morte instantâne, que, montante abaixo, cruzando as artérias do calcetamento, vazava nos frangipanis a desabrochar nas órbitas ingénuas da menina sentada, quieta, no banco do seu jardim.

De facto, correria inútil, pois não era para o vazio que aquela morte abria que a pequena olhava, mas sim para o do jardim, enfim, para essa imagem que somente os sentidos consentiam,

a brisa nas faces ingénuas,

o perfume dos frangipanis

a lira dos pássaros

a experiência

de uma pétala

de uma folha

no leito da língua;



enfim, contemplava o seu jardim... Foi nessa imaginação que os pais a encontraram, longe do alvoroço daquela morte traquina e mesquinha. E, sem perceberem bem porquê, deixaram-na estar naquela quietude.

A menina não ouvia, pois, a balbúrdia que tantas vezes vaticinara, tantas quantas os aplausos a fizeram encrespar o cenho ante a eminência da morte que somente ela conseguiu ver, talvez como recompensa...

pensou e começou a chorar.

Uma vez tentou pintar, fracassada a gesticulação, mas os pais não entenderam a profecia, pois tão pouco se pasmaram com as persistentes cores vermelhas, as crianças estateladas no asfalto e paradoxo nos sorrisos e salvas de palmas da audiência, para não falar das bicicletas e skates destroçados no asfalto. Desde então passou a substituir as opressivas imagens pela liberdade que as cores sonhadas, os cheiros e sabores infundiam, e para o jardim passou a ir e deixar-se estar sentada, sussurrando qualquer encanto nesse jeito peculiar a que já me referi, entre uma ária sussurrada e distinta e uma repreensão mastigada. E Deus a livre e guarde de a mãe ouvir nessa dolência, pois, em ouvi-la, a paisagem perderia as cores da liberdade que, felizmente, a menina sempre imaginou...

MANJATE, Lucílio. O contador de palavras. Maputo: Alcance Editores, 2011.p. 30-33